Investir em eficiência energética pode trazer diversos benefícios para indústrias e empresas. O Prof. Dr. Sergio Valdir Bajay, professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador sênior do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE), descreve as etapas necessárias para a adoção de práticas de eficiência energética, além de falar sobre possíveis barreiras, políticas públicas e tecer comparações com outros países. Leia a seguir na entrevista feita por Sarah Schmidt para o MonitorEE.
MonitorEE: O que significa dizer que determinada empresa ou indústria investe em eficiência energética? Bajay: O primeiro passo é a empresa levantar as características do seu consumo de energia, definindo indicadores. O consumo total de energia em uma determinada indústria, por si só, não diz nada. É preciso ter um indicador, como o consumo específico, que seria o consumo de energia por produção física. Para algumas indústrias, ele pode ser por tonelada de produto, como no caso da indústria siderúrgica, ou por metro quadrado, como no caso da indústria de cerâmica de revestimento; no caso de empresas com produtos heterogêneos, como montadoras de veículos, pode ser o consumo de energia por certo tipo de veículo; ou, ainda, o consumo de energia por faturamento da empresa. Depois de caracterizar o seu consumo específico, a empresa tem que definir alguma meta de redução. Isso, em princípio, seria interesse natural da própria empresa, já que reduzir o consumo de energia significa reduzir o consumo específico de energia por unidade de produto que a empresa produz. E isso significa a redução de custos e, consequentemente, aumento dos lucros e melhoria de competitividade.
MonitorEE: Qual é o primeiro passo que a empresa deve tomar para usar a energia de forma mais racional?Bajay: Investir em eficiência energética significa seguir três passos: primeiro, conhecer esse consumo específico que muitas empresas não conhecem. Segundo, estabelecer uma meta realista de consumo específico. E o terceiro, buscar ações para atingir essa meta. Essas ações podem ser melhorias na manutenção, na parte operacional (no modo como uma empresa produz), na aquisição de insumos e componentes, ou, como os países da União Europeia têm feito, utilizando EcoDesign para projetar novos produtos que exijam um consumo de energia menor.
MonitorEE: O senhor poderia citar alguns exemplos de ações nesse sentido?Bajay: As ações de eficiência energética podem ser de diversos tipos. A maior parte das pessoas pensa em trocar um equipamento ineficiente, velho, como um motor elétrico, por um novo. Isso é uma ação comum na indústria. Mudar hábitos é algo que pensamos em fazer inclusive no âmbito residencial, buscando economias de energia. Na indústria existem outros tipos de ações com variados níveis de investimento. Uma delas é ajustar um determinado processo existente para que ele consuma menos energia, como em caldeiras, por exemplo, ou no ar comprimido, já que, geralmente, utiliza-se pressões altas, desnecessárias, em equipamentos. Existem processos industriais que permitem a troca de um processo como um todo, ou, diferente de outros setores da economia, no ambiente industrial é possível mexer em apenas uma parte desse processo, trocando equipamentos ineficientes por componentes novos, algo bastante comum nesse segmento.
MonitorEE: Qual é o papel dos sistemas de gestão energética nesse processo?Bajay: Implantar um sistema de gestão de energia é particularmente importante na indústria, já que o primeiro passo para se pensar em melhorar a eficiência energética de um local é conhecer seu consumo específico. É possível conhecer esse consumo ocasionalmente, como em um momento de crise, em que o gasto com energia está muito elevado, ou fazer isso de maneira contínua e esse é o princípio da gestão de energia. Você cria uma equipe que estará o tempo todo analisando o desempenho energético e propondo melhorias. No início dos trabalhos, o foco é eliminar os desperdícios, algo muito comum de ser encontrado em excesso e cuja redução tem custos relativamente baixos. Conforme o tempo passa, isso muda, porque as ações mais baratas já foram implementadas e outras ações vão exigir investimentos maiores. Mas é algo que vale a pena porque traz competitividade para essa indústria e a coloca em posição de liderança e isso fica mais claro após alguns anos do início dos investimentos nessa área.
MonitorEE: Podemos citar alguns números que representam o retorno econômico que uma unidade industrial pode ter ao investir em medidas de gestão da energia (além dos ambientais e sociais)? Bajay: Esses números variam bastante entre indústrias de pequeno e médio porte e as de grande porte. Geralmente, as de pequeno e médio porte, tirando algumas exceções, conhecem poucos detalhes do seu consumo energético e por isso têm muito desperdício. Com isso, como já vi em apresentações da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (ABESCO), elas podem alcançar economias de 20%, 30% e 40% de energia. As grandes empresas, muitas delas energointensivas (consomem uma grande quantidade de energia), já costumam ter profissionais técnicos na área de eficiência energética. Com isso, essas empresas têm menos desperdício e, consequentemente, ganhos menores. Para elas, é preciso analisar o potencial de conservação de energia. Precisamos pensar em três conceitos importantes: potencial técnico, econômico e de mercado.
MonitorEE: Qual seria o papel de cada um deles?Bajay: Para calcular o potencial técnico das grandes indústrias, você compara as características dos processos atualmente utilizados na empresa com os melhores processos disponíveis no mercado. Com isso, é calculado o potencial de conservação caso esses processos ultrapassados fossem substituídos pelos melhores existentes no mercado e, assim, chega-se a grandes números. Em pesquisas na Unicamp já chegamos na ordem de 30%, 40% de economia de energia. Porém, isso não significa que essa troca seja viável economicamente. E aí entra o segundo conceito, que é o potencial econômico. Ele implica em fazer uma análise econômica do que é efetivamente viável. Com isso, em nossos estudos, esse valor geralmente cai pela metade: de 30% de potencial técnico de economia de energia para 15% economicamente viável. Ainda assim, é um potencial significativo. E, finalmente, chegamos ao terceiro conceito, o potencial de mercado, que é uma fração deste potencial econômico que é priorizado pela direção da empresa como algo de interesse para se investir.
MonitorEE: Quais são as principais barreiras para que a indústria invista em eficiência energética?Bajay: Para as empresas de pequeno e médio porte, frequentemente é o desconhecimento de ações que podem melhorar sua eficiência energética e a dificuldade de acesso a recursos para financiar essas ações. No caso de grandes empresas, as energointensivas principalmente, o problema maior é priorizar outros tipos de investimentos que não levem em conta ações de eficiência energética. Muitas diretorias preferem investir na expansão da própria empresa. Ao observarmos a realidade brasileira, percebemos que a eficiência energética [na indústria] tem ficado em segundo plano.
MonitorEE: Em meio à atual pandemia do novo coronavírus, o senhor vê a implementação de medidas de eficiência energética na indústria como uma saída para auxiliar na recuperação econômica do setor?Bajay: Sem dúvida, é uma ação importante a ser levada em conta. No momento em que a sobrevivência das empresas está em jogo, principalmente das pequenas e médias, é uma estratégia essencial para reduzir os custos. Outro ponto importante é que as crises, muitas vezes, são oportunidades para inovar. Por exemplo, na União Europeia, as discussões em curso agora envolvem metas locais ambiciosas de descarbonização. Em um momento como esse, em que o estado precisa ajudar a população e as empresas, a União Europeia tem privilegiado iniciativas que acelerem o processo de descarbonização, como, por exemplo, pelo uso de fontes renováveis de energia na geração de energia elétrica, ou nos transportes. A eficiência energética caminha neste mesmo sentido. Seria desejável que o Brasil tivesse o mesmo tipo de postura. Ainda não vejo muitos sinais nesse sentido, mas faço parte do grupo que tenta motivar as autoridades a caminhar nessa direção.
MonitorEE: No Brasil, 1% da receita operacional líquida das distribuidoras de energia elétrica tem que ser investido entre projetos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e projetos do Programa de Eficiência Energética (PEE) da Aneel. Esse recurso do programa poderia ser usado pelas indústrias para reduzirem seu consumo energético?Bajay: Primeiro, é importante refletir sobre o funcionamento do PEE. Na maior parte dos outros países essa obrigação não é em cima do investimento, mas sim em economia de energia. Por exemplo: a legislação determina que uma empresa de distribuição que esteja produzindo 100 unidades de energia precisa economizar duas dessas unidades. Esse tipo de obrigação é mais eficiente porque a empresa vai buscar projetos que consigam essa economia a um custo menor, já que sua obrigação é cumprir uma meta de energia e não de investimento. Isso é o que a gente chama de mecanismo de mercado. No Brasil, como a obrigação é em cima do recurso, acontece exatamente o contrário. As empresas distribuidoras selecionam os projetos em que podem usar esse gasto obrigatório da forma mais rápida possível e que não são necessariamente os melhores projetos. Isso ocorre porque a obrigação é em cima do custo e não do resultado em eficiência energética. A Aneel impõe algumas restrições, principalmente em relação ao custo-benefício dos projetos, que precisa ser menor ou igual a 0,8. Mas as distribuidoras, muitas vezes, escolhem os projetos mais fáceis. No Brasil, não temos tido políticas públicas eficientes na área industrial, mas provavelmente temos um potencial grande com o PEE, principalmente com a redução de desperdício em pequenas e médias empresas.
MonitorEE: Se mais indústrias investirem em eficiência energética, precisaremos de mais mão de obra qualificada e teremos mais oportunidades de trabalho...Bajay: Eu diria que sim, na medida em que o setor industrial perceba que a eficiência energética é algo que traz oportunidades. Minha experiência me mostrou que a eficiência energética é uma área muito suscetível a políticas públicas e, no meio industrial, elas sempre estão associadas a incentivos financeiros, como descontos tarifários e, principalmente, incentivos fiscais. Quando essas políticas públicas existem de forma marcante, como na União Europeia, o empresariado responde bem e isso acaba criando uma demanda maior por técnicos na área. No Brasil, as políticas públicas de fomento à eficiência energética ainda são reduzidas. A questão é sensibilizar os agentes governamentais para que essas políticas de fomento sejam implementadas. Com isso, a demanda por profissionais adequados será uma decorrência natural.
MonitorEE: Essas políticas públicas precisam ter contrapartidas para que, após um período, a indústria possa caminhar sem elas?Bajay: O objetivo dos incentivos é exatamente esse, que as indústrias alcancem o potencial de mercado para que, depois, isso possa acontecer de forma natural. Observando, novamente, as políticas públicas de outros países, nota-se que os lugares com mais sucesso são aqueles com aspectos mandatórios, mas com metas negociadas. Na União Europeia, a indústria tem investido bastante em eficiência energética porque o setor tem a obrigação de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, principalmente as grandes empresas. E, claro, racionalizando o consumo de energia, é possível reduzir essas emissões. Com metas ambiciosas e mandatórias de descarbonização, existem instrumentos legais que pressionam as empresas a racionalizar seu consumo de energia. Outro bom exemplo é a Índia. Lá, as indústrias que consomem acima de uma certa quantidade de energia são obrigadas a realizar diagnósticos energéticos e estabelecer metas de eficiência energética. Por aqui, estamos começando a ter acordos voluntários, como o Programa Aliança, mas entra quem quiser. Ainda estamos defasados em relação às melhores práticas de outros países, que exigem diagnósticos energéticos e possuem metas para empresas que consumam energia acima de um determinado valor. É importante dar liberdade para que os empresários busquem as melhores maneiras de atingir certas metas, sejam as de redução de emissões de gases de efeito estufa, sejam do próprio consumo de energia. Isso precisa acontecer no Brasil também. Hoje as associações de indústrias divulgam cada vez menos suas estatísticas energéticas. Então, é preciso dar incentivos mas cobrar contrapartidas, porque sem essas informações o planejamento de ações de eficiência energética fica comprometido.
MonitorEE: O senhor é um dos especialistas que trabalha no Plano Decenal de Eficiência Energética que está em elaboração pelo Procel. Poderia comentar um pouco sobre esse processo? Quais são ações pensadas para o setor industrial?Bajay: Uma das grandes preocupações da equipe e do Procel é que muita coisa que tem sido feita na área de eficiência energética não garante uma transformação de mercado, ou seja, que paulatinamente ela se torne um negócio para o setor industrial. A meu ver, os acordos voluntários são uma ótima aposta no curto e no médio prazos, mas o governo precisa estabelecer metas e instrumentos mandatórios para o longo prazo, como a Índia e a União Europeia. Para isso, é necessário conhecer melhor a própria realidade industrial e aprender a negociar com o setor. E, nesse cenário, claro, a indústria precisa ter liberdade de encontrar as melhores maneiras de atender a essas metas. No Japão, por exemplo, eles precisam ser eficientes porque importam praticamente todos os recursos naturais. Lá há a obrigatoriedade de que as empresas com consumo acima de determinado valor tenham um gerente de energia. Esse profissional precisa fornecer estatísticas de desempenho energético para o governo. Por aqui, precisamos ir nos dois caminhos: estabelecer metas governamentais e deixar espaço para que as indústrias indiquem o melhor caminho para atingi-las. É preciso ter negociação entre as partes de forma transparente.
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